segunda-feira, 15 de agosto de 2011

Fechei os olhos para ver melhor





O Cego, Renoir, Van Gogh e o resto
         Vistos de costas, pareciam apenas dois amigos conversando diante do quadro “Rosa e Azul”, de Renoir, comentando o quadro.
            Porém, quem prestasse atenção nos dois perceberia, e talvez estranhasse que um deles, o de elegantes óculos de sol, parecia um pouco desinteressado, apesar de todo o empenho do outro, traduzido em gestos e a eloqüência quase murmurada. O que dava ao de óculos a aparência de desatento era a cabeça um pouco baixa demais para quem estivesse olhando o quadro, cabeça que também não estava de frente, mas um pouco virada para a direita com relação à pintura, como se ele enfocasse outra coisa, a assinatura de Van Gogh no pé do quadro vizinho, por exemplo.
            O que falava segurava às vezes o antebraço do de óculos com uma intimidade solícita e confiante. Como se fossem amantes.
            Aproximei-me do quadro, fingindo olhar de perto a técnica do pintor, voltei-me e percebi: o de óculos escuros era cego.
            Cego! O que fazia um cego no MASP?
            Ninguém parecia interessado neles; nem o guarda treinado para olhar pessoas em vez de quadros. De perto, pude ouvir o rapaz que falava.
            __... os olhos dessa menina de rosa brilham como se estivessem marejados, como se ela estivesse a ponto de chorar, e a boca, de um rosa muito vivo, quase vermelho, ajuda a dar essa impressão, parece que se contrai. É muito mágico, não se pode ter certeza. Por cima do corpinho do vestido ela usa uma espécie de colete também de musselina rosa franzida adornada por uma espécie de babado de alto a baixo.
            __ Você já falou “espécie de” três vezes.
            __ Ta bom, vou evitar. Essa... esse colete é preso na cintura por uma faixa bem larga de cetim cor-de-rosa, larga mesmo, de quase um palmo, usada como cinto. Ela tem o dedo polegar da mão direita enfiado nessa espécie de, perdão, nessa faixa de cetim, o que parece um truque do pintor para dar movimento ao braço e graça infantil à figura da menina.
            Algo extraordinário acontecia ali, que eu só compreendia na superfície: um homem descrevendo para um amigo cego um quadro de Renoir. Por que tantos detalhes?
            __ A saia rodada franzidinha é do mesmo tecido cheio de luz. As meias são de uma tal transparência diáfana rosada que mal se destacam das perninhas sadias dela. Vão até a metade da perna, e os sapatos são pretos de alcinha com uma fivela, não, não é uma fivela, é um enfeite dourado,


um na alça e outro no peito do pé, bem discretos. Ela dá a mão esquerda para outra menina de
vestido igualzinho ao dela, só que em azul, bem brilhante, e esta tem cabelos mais claros.
            ___ Azul como que? Fale mais desse azul. – pediu o cego, como se precisasse completar alguma coisa dentro de si.
            __ É um azul claro, muito claro, um azul que tem movimento e transparência, e muita luz, um azul tremulando, azul como de uma piscina muito limpa eriçada pelo vento, uma piscina em que o sol se reflete e que tremula em mil pequenos reflexos...Lembra-se daquela piscina em Amalfi? (cidade portuária da Itália que viveu um período de esplendor nos séculos XI e XII).
            __ Lembro...lembro...- e sacudia a cabeça reforçando.
            __ É parecido. A menina de azul é um pouco mais alta e está quase sorrindo... o contrário da outra. Parecem irmãs, devem ser irmãs, mas ela tem os cabelos mais claros, louros mesmos, e mais compridos. A mão esquerda dela tem um movimento gracioso, como se ela segurasse com o indicador e o polegar um raio de luz do vestido brilhante.
            Afastei-me, olhei de longe. Roupas coloridas, esportivas. Depois de poucos minutos passaram para outro quadro, de Van Gogh. Pouco a pouco a compreensão do que faziam ali me inundou, e fechei os olhos para ver melhor. O guarda treinado para vigiar pessoas estava ao meu lado e contou, aos arrancos.
            __ Eles vêm muito aqui. Só conversam sobre um quadro ou dois de cada vez. É que o cego se cansa. Era fotógrafo, ficou assim de desastre. É cego, mais é rico.
            Disse rico como se fosse uma compensação justa. O mistério da alma humana não inquietava, aquela necessidade de ver. A construção de um quadro na mente de alguém por meio de palavras. Não o tocava a dedicação do narrador de quadros – seria amor? – o seu esforço amoroso de fazer as palavras brilharem como tinta, concretas.
            Saí, passei por eles, ocupados em pintar o filho do carteiro, de Van Gogh:
            __ ... um amarrotado boné de carteiro azul marinho com debruns dourados na pala e na capa, e tem olhos azuis muito abertos, como que assustado...


(ANGELO, Ivan. O comprador de aventuras e outras crônicas. São Paulo: Ática, 2000. p.09-11).

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